Técnica famosa entre atores ganha popularidade como ferramenta de autoconhecimento. Saiba como fazer
O filme “The Power of the Dog”, que em português recebeu o nome de “Ataque de Cães”, ganhou destaque pela elogiada atuação de Benedict Cumberbatch, pelas polêmicas do que o ator fez no set de filmagens (declaradamente vegano, ele teria castrado um búfalo de verdade durante as gravações), pelo número de indicações no Oscar 2022 (o filme mais indicado do ano) e pelo trabalho de investigação de sonhos feito por Cumberbatch e pela diretora Jane Campion.
Durante divulgação do filme, a diretora neozelandesa contou que contratou uma coach de sonhos para ajudar na tarefa de dirigir seu primeiro longa em 12 anos. Campion que já revelou em entrevistas ter sofrido de esgotamento físico e mental e crises de pânico em decorrência de longas jornadas, classificou o trabalho com sonhos como “o mais incrível que já fez”.
No caso de Campion, foi a terapeuta Kim Gillingham a responsável pelo trabalho. Uma das mais populares coaches do segmento, ela também atuou em outra produção premiada, “King Richard” com o ator Will Smith. O currículo de filmes e séries dela é extenso. Por exemplo, Sandra Oh agradeceu à Gillignham quando recebeu o prêmio de melhor atriz no SAG Awards em 2019.
A lista de atores ainda inclui Kirsten Dunst, Bill Pullman, Bradley Cooper e Lady Gaga durante a produção do remake ‘Nasce uma Estrela’, de 2018.
O que é a terapia de sonhos?
Conhecido aqui nos Estados Unidos como ‘dream work’ ou ‘dream analysis’, tem origem na psicologia junguiana e nos últimos anos ganhou popularidade no país como ferramenta de autoconhecimento.
Como o nome já sugere, sonhos são usados como ponto de partida.
Workshops são oferecidos para análise deles que variam de algumas horas, a retiros ou sessões individuais, feitas presencialmente ou à distância. Essa última modalidade ganhou popularidade devido à pandemia e também ajudou a ampliar o acesso à técnica, já que tornou possível realizar sessões virtualmente.
O objetivo é o de usar o material criado pelo inconsciente para enriquecer o que é realizado quando estamos acordados. “Trabalhamos como acessar o rico, não descoberto, material para trazê-lo para nosso trabalho criativo”, explica a apresentação do workshop oferecido por Kim Gillingham nos arredores de Nova York.
A grande maioria dos que participam são atores ou tem carreiras ligadas ao meio artístico.
O trabalho da terapeuta mistura técnicas da psicanálise de Carl Jung com o método de formação de atores do Actors Studio, criado nos anos 1930 em Nova York a partir do trabalho do russo Konstantin Stanislavsky. De acordo com ‘O Método’, como até hoje é chamado, atores investigam a natureza dos personagens e ficam imersos neles até o ponto de perderem a sua identidade e também usam suas experiências pessoais para enriquecer o trabalho por meio da autenticidade. James Dean, Marlon Brando foram treinados na técnica e hoje Bradley Cooper é um dos seguidores do método. Alguns atores levam a tarefa ao limite e passam a viver exatamente como quem estão representando. Foi o caso de Benedict Cumberbatch que afirmou ter ficado seis dias sem tomar banho para ficar imerso no personagem Phil Burbank, em Ataque de Cães. O objetivo é que a atuação seja tão verossímil que a audiência não tenha dúvidas de estar assistindo a uma cena real.
No caso da terapia, essa imersão no inconsciente é feita por breves períodos, quando a pessoa revisita o sonho, guiada pelo terapeuta ou facilitador.
O trabalho começa com a descrição do sonho, seguido por exercícios de respiração para levar ao relaxamento do corpo e das ondas mentais. Na sequência, a pessoa visualiza que retorna ao sonho.
O terapeuta ou facilitador guia a pessoa numa técnica conhecida como “imaginação ativa”, em que ela vai se transformando nos objetos encontrados. O trabalho pode ser feito em dupla, em que cenas e objetos do sonho são compartilhados até que ambos estejam imersos na experiência. Segundo Jung, todos os aspectos do sonho são representações do sonhador e o inconsciente é universalmente compartilhado pelas pessoas.
Sensações e associações são analisadas do ponto de vista particular do sonhador, sem recorrer a diagnósticos prontos ou aos populares dicionários de sonhos, que definitivamente não participam do processo. O objetivo não é puramente analisar o sonho, mas usá-lo como ferramenta de investigação interior.
No caso dos atores, referências importantes podem emergir para enriquecer os trabalhos. Mas qualquer pessoa pode se beneficiar das informações do inconsciente.
A doutora em psicologia e mestre em ciência das religiões, a brasileira Alessandra Giordano, usa sonhos como ferramentas dos processos terapêuticos há 30 anos. E como parte do processo de autoconhecimento e de alívio de tensões, repetições, compulsões. “Sonhos são produtos do inconsciente, são emoções reprimidas com os quais o ego não consegue lidar. Então tudo é jogado para o inconsciente e a única linguagem que o inconsciente sabe falar é a simbólica. E uma das potentes é o sonho”, disse ao blog.
A psicoterapeuta usa sonhos em terapias convencionais e em sessões de arte terapia. “Existem várias formas de trabalhar o sonho. Primeiro peço para me contar. Depois a pessoa pode fazer uma imagem e analisa o que sente e conversamos sobre as percepções”, explica.
Giordano também recorre à meditação e a exercícios respiratórios para levar a pessoa “de volta” ao sonho. “Principalmente para a parte que mais a intrigou, que ela gostaria de saber mais”, explica.
Quando retorna da meditação, a pessoa é orientada a escrever como gostaria que o sonho continuasse. “Isso ajuda a sinalizar para o ego com as coisas poderiam ser e abre portas para fluir a energia do inconsciente e amenizar o que é recorrente, repetitivo, compulsivo ou neurotiza”, explica.
Desde quando sonhamos?
Relatos sobre sonhos podem ser encontrados desde o antigo Egito quando sacerdotes os interpretavam como mensagens que podiam prever o futuro. Para Aristóteles, sonhos eram a prova da existência da alma.
Mas foi a partir do trabalho de Sigmund Freud, criador da psicanálise, no século 20, que a interpretação de sonhos se tornou popular.
Freud publicou obras em que explicavam o significado dos símbolos encontrados em sonhos, como representação do que era reprimido pela consciência. Carl Jung, fundador da psicologia analítica, ampliou o trabalho dizendo que os sonhos também são expressões do inconsciente e que os reais sentidos dos sonhos variam de acordo com a interpretação do próprio sonhador.
Eles são utilizados como ferramentas também em outras terapias, como a Gestalt, terapia comportamental e arte terapia.
Apesar de ainda gerar controvérsias – muitos acreditam que sonhos são puramente um fenômeno cerebral em relação ao qual não é possível atribuir significados-, um estudo publicado no Journal of Psychotherapy Practice and Research apontou que 70% dos pacientes que são tratados com terapia dos sonhos apresentam melhoras, independentemente da abordagem utilizada.
Uma delas batizada de Terapia de Ensaio de Imagem tem sido aplicada com sucesso no tratamento de estresse pós-traumático com pesadelos recorrentes. O paciente escreve o sonho e então muda o contexto para algo positivo. Então ele repassa a história mentalmente por até 20 minutos diários, o que tem se mostrado eficaz em reduzir a frequência dos pesadelos.
Terapia de sonhos: pesquisas
O comprovado efeito terapêutico dos sonhos começa também aos poucos a ganhar validação da ciência.
Seres humanos tem entre 3 e 5 sonhos por noite durante a fase de sono profundo, conhecida como Movimento Rápido dos Olhos. O ciclo do sono foi descoberto em 1953 e, portanto, pesquisas na área ainda são consideradas algo novo para ciência.
Estudos que monitoram a criação de imagens neurais durante a fase de sono profundo vêm demonstrando importantes alterações químicas, que atuam como antidepressivas e anti-inflamatórias. Um deles comprovou que quando sonhamos, o corpo consegue regular a quantidade de noradrenalina, reduzindo a níveis mínimos um dos chamados hormônios do estresse. É como se durante o sonho, o corpo fosse preparado para acordar recuperado dos desgastes do dia anterior.
Outros estudos têm feito conexões entre sonhos e a capacidade de aprendizagem ou de consolidação de memórias, como o que comprovou que atividades cerebrais geradas por experiências recentes são reativadas durante o sono.
O que terapeutas e médicos vêm comprovando cada vez mais é que uma boa noite dormida e sonhada é uma ótima opção para manter a saúde do corpo e também de saúde mental.
Aprenda a lembrar e a interpretar os sonhos
A psicóloga Clarissa Pinkola Estés, uma das mais importantes estudiosas de símbolos e de contos de tradição oral do mundo, autora da obra ‘Mulheres que correm com os Lobos’, ensina em um dos seus workshops a interpretar sonhos.
“Normalmente as pessoas se lembram apenas de fragmentos dos sonhos. Mas saiba que lembrar sonhos é como exercitar um músculo. Quanto mais você prestar atenção, mais forte sua memória se torna”, diz. Confira o que ela ensinou no curso lançado em parceria com a Sounds True:
Deixe papel e caneta ao lado da cama. Você pode usar uma caneta com luz em uma das pontas o que te deixará pronto para escrever sem precisar levantar para acender a luz.
Antes de dormir, diga para você: ‘Fazedor de sonhos, eu realmente quero me lembrar dos meus sonhos. Manifesto aqui a intenção de lembrar.’
Na manhã, escreva qualquer coisa que venha à memória, mesmo que seja apenas um fragmento. Segundo Estés, nos sonhos os menores detalhes já são considerados significantes.
“Muitas pessoas relatam sonhos elaborados, ricamente adornados e cheios de detalhes, mas a essência de um sonho é a mesma de uma história, é o que acontece entre as pessoas. É nisso que você precisa focar a atenção”, ensina.
Faça a mesma coisa na próxima noite e nas seguintes. Siga escrevendo o que lembrar. “Logo você se lembrará não apenas do sonho inteiro, como acontecerá como os elefantes que formam uma fila segurando o rabo do que está à frente com a tromba: o sonho que você teve antes de acordar vai te levar para o que você teve antes, e para o que teve anteriormente e depois para a toda a sequência que sonhou durante a noite”, diz.
Estés diz que também é possível gravar o sonho, se a pessoa preferir.
Como interpretar
Existem várias maneiras de explorar os símbolos dos sonhos. Clarissa Pinkola Estés ensina o método da psicologia analítica, de Carl Jung , que ela classifica como curto, conciso e claro.
- Escreva o sonho da maneira mais clara e precisa possível
- Faça uma lista com os substantivos do sonho, que são as pessoas, os lugares e as coisas que apareceram no sonho
- Pegue o primeiro item e comece a fazer associações pessoais. Que imagens, ideias, pensamentos e sentimentos vem à mente quando penso nisso? Por exemplo, um campo pode remeter ao lugar onde uma pessoa passou a infância
- Faça associações com todos os itens da lista
- Leia o sonho em voz alta, mas no lugar dos substantivos, use as descrições trazidas à mente pelas associações pessoais
- Então reflita: onde na minha vida há algo nesse momento que representa o significo que descobri que tem o meu sonho? Ou onde na minha vida falta algo como o descrito pelo meu sonho? Onde tenho essa necessidade?